DO GOLPE À REDEMOCRATIZAÇÃO
Ventos da mídia na tormenta de 1964
Luiz Cláudio Cunha Rio 40 graus.
O mundo inteiro sabe que o verão carioca é tórrido. Assim, o leitor mais atento da primeira página do Jornal do Brasil daquele sábado, 14 de dezembro de 1968, estranhou o quadro da previsão do tempo, publicado no canto superior esquerdo, ao lado do logotipo do mais influente jornal do país naqueles idos tão estranhos:
"Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras."
No canto superior direito, outra informação inusitada: "Ontem foi o Dia dos Cegos". A explicação para tal cegueira estava abaixo, na manchete sobre o fato do dia: "Governo baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado".
Acontecera na véspera o golpe dentro do golpe de 1964, com a edição do AI-5, que escancarou a ditadura no Brasil. O locutor Alberto Curi, sentado ao lado do ministro da Justiça, Gama e Silva, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, leu o texto do ato em cadeia nacional de rádio. A fala do locutor ainda ecoava no ar quando cinco oficiais uniformizados do Exército – um major e quatro capitães – invadiram a redação do JB no Rio de Janeiro para censurar o noticiário.
Diante da ocupação, o editor-chefe Alberto Dines começou a trabalhar com o chefe de redação Carlos Lemos para encontrar maneiras de driblar o controle militar. O editorial censurado da página 10 foi substituído por uma foto vertical de arquivo em que um enorme campeão mundial de judô, numa brincadeira familiar, se deixava derrubar pelo filho pequeno e franzino. Uma fina alegoria que enganou a tesoura do censor. Mas Dines queria mais, para contornar o bloqueio da primeira página. Chamou o copidesque Roberto Quintaes e lhe pediu que recriasse a previsão do tempo com dois números cabalísticos: o 38, número do Ato Complementar que fechou o Congresso, e o 5, marca do ato que enterrou a liberdade. E assim nasceu, para a história do jornalismo brasileiro, a curiosa previsão de tempos em que o Brasil daquele verão esquisito oscilava dos 38º em Brasília para os 5º das Laranjeiras
a bem de Chedid. De volta a Porto Alegre em 1972 após uma passagem por Veja em São Paulo, ele acabava de assumir a chefia de redação da Folha da Manhã, o jornal mais novo e rebelde da pacata Caldas Júnior. O ex-motorista de Costa e Silva, Francisco Antônio, filho de Breno, tentava uma última cartada para salvar o jornal, que agonizava com uma rala redação de duas dezenas de jornalistas e uma tiragem minguada de sete mil jornais. Junto com Elmar vinha da capital paulista um respeitado repórter da revista Realidade, José Antônio Severo, gaúcho de Caçapava do Sul, que assumiria a direção da Folha da Manhã em sua fase mais brilhante. Conta Elmar [depoimento ao autor em 3 set. 2009]:
Havíamos decidido também não aceitar censura por telefone. Nos primeiros meses não houve problema, não tivemos notícia do censor. No final de 1972, talvez por causa do embate pela sucessão do general Médici, a censura recrudesceu. Um dia fui comunicado pela direção que um agente da Polícia Federal viria à redação com orientação sobre assuntos que não deveriam ser noticiados.
Apresentou-se, então, um jovem estudante de Direito, simpático, compreensivo, um tanto sem jeito. Chamava-se Roque Chedid. Disse que cumpria ordens e revelou total inexperiência no assunto. Expliquei que, por princípio profissional, eu era contra qualquer censura, mas que era empregado e a orientação da empresa era acatar as determinações. Falei da nossa orientação de não aceitar censura por telefone, até para evitar trotes, e ele concordou. Ele disse que não iria interferir na redação, nem ler matérias, nem nada. Viria apenas quando houvesse algum assunto proibido.
E passou a comparecer periodicamente. Uma ou duas vezes por semana ele aparecia. Não trazia ordens escritas, nem determinações detalhadas. Puxava um papelzinho do bolso e lia o que estava anotado, geralmente apenas o tema a ser suprimido. Por exemplo: "Protestos e manifestações de rua no Rio e em São Paulo". "Movimento de guerrilha no Araguaia".
Muitas vezes, era ele que nos trazia a notícia, uma vez que a censura exercida na origem junto às agências de notícias que nos abasteciam com o noticiário nacional já suprimia os tais assuntos proibidos. Ele também não sabia direito do que se tratava. Lia o que estava anotado no papel.
Um dia, ele apareceu para proibir qualquer notícia sobre o incidente daquela manhã no Rio de Janeiro. Ninguém sabia do que se tratava. Chedid contou que eram os protestos pela presença na cidade do secretário de Estado de Nixon, William Rogers. Chedid nem sabia ao certo quem era. "É a visita do Rogers, Rogers..." Não conseguia lembrar do primeiro nome do visitante. Alguém da redação ajudou: "Ah, o Roy Rogers?". Ele agradeceu: "É, isso mesmo, o Roy Rogers", respondeu, sem atentar para a diferença entre o secretário americano e o velho herói dos filmes de faroeste. Assim era a nossa censura.
Como a minha mesa ficava no fundo, ele tinha que atravessar toda a redação e muitas vezes, quando o pessoal estava de bom humor, era saudado com uma salva de palmas quando se retirava. Ele saía ruborizado, constrangido.
De repente, assim como veio, Roque Chedid desapareceu. Nunca mais o vi. Há uns dois anos li uma notícia na Zero Hora sobre sua aposentadoria como desembargador ou algo assim. A nota de poucas linhas não mencionava a sua experiência como censor.
Naquela terça-feira de setembro de 1972, a grave missão de Chedid exigia sua presença na redação do Correio do Povo. Exasperado como Ruy Mesquita, Breno Caldas reagiu à proibição para publicar o telegrama do diretor do Estadão. Ele engrossou a voz e pediu a ordem de censura por escrito. Chedid insistiu com o recado verbal, mas não adiantou. Breno saiu do jornal à noite, deixando uma determinação clara ao chefe de redação, Adail Borges Fortes:
– Se não vier a ordem escrita, vamos publicar!
O impensável iria acontecer. O provecto e conservador Correio do Povo batendo de frente com o regime militar. Chedid alertou o comando gaúcho da Polícia Federal, que repassou a notícia espantosa a Brasília. E o governo do general Médici, que tinha o gaúcho Carlos Fehlberg como seu secretário de imprensa, deu a ordem final:
– Apreendam!
A tropa de choque do Exército cercou o jornal, na rua Caldas Júnior, esperando o jornal sair da boca das rotativas, a partir das 4h da madrugada. O comandante da operação queria que a edição apreendida fosse transportada nos caminhões do próprio jornal até a sede da Polícia Federal, na avenida Paraná. Breno Caldas vetou a proposta indigna, e os militares tiveram que requisitar caçambas que trabalhavam no cais do porto, a três quadras de distância, para cumprir a missão da censura. Para não perder a viagem, os militares levaram, junto com o Correio do Povo, a edição da quarta-feira, 20 de setembro, da Folha da Manhã de Severo e Elmar, que também publicava o telegrama maldito de Ruy Mesquita. A rara trombada com o regime e a brava reação de Breno Caldas é uma exceção que confirma a regra de plácida convivência da imprensa gaúcha com a censura e a conseqüente autocensura, que nivelava tudo por baixo.
Seis anos depois já se falava em abertura, em anistia, e não havia mais censura prévia – mas o fantasma da autocensura ainda sobrevoava gabinetes ilustres da imprensa gaúcha em 1978. Uma norma não escrita da mídia do Rio Grande diz que, onde há gaúcho, tudo fica mais importante e prioritário. Um terremoto no Cazaquistão ganha a primeira página, por exemplo, se existe gaúcho entre as vítimas.
Este dogma foi atropelado impiedosamente no caso do sequestro dos uruguaios Universindo Díaz, Lílian Celiberti e seus dois filhos, Camilo e Francesca, em novembro de 1978 em Porto Alegre. Era uma incursão binacional do Brasil e Uruguai no âmbito da Operação Condor, o "Mercosul do Terror" engendrado pelas ditaduras que infestavam o Cone Sul na década de 70. O jurista francês Jean Louis Weil passou uma semana na capital gaúcha investigando o caso e, pouco antes do deixar o país, deu uma contundente entrevista coletiva no Rio dando nomes aos bois – os militares uruguaios e os policiais brasileiros envolvidos no sequestro. O delegado gaúcho Pedro Seelig, apontado por Weil, era a mais reluzente estrela da repressão no sul. Merecia, portanto, todas as manchetes que sua condição de filho da terra lhe garantia. O que aconteceu acabou sendo uma página vergonhosa de submissão da imprensa gaúcha ao aparato repressivo da ditadura, um caso explícito de autocensura que eu retrato no liv ro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios [CUNHA, op. cit., p. 143-152].
No aeroporto do Galeão, Jean Louis Weil falou à imprensa na segunda-feira, 11 de dezembro. O francês identificou os autores do sequestro nos dois lados da fronteira. A sigla de lá que ninguém ainda conhecia aqui era o OCOA, Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas. A de cá era o velho DOPS de guerra. Weil denunciou o nome do militar uruguaio a quem estava subordinado o OCOA, o general Amaury Prantl. E apontou o chefe brasileiro do sequestro: o notório delegado Pedro Seelig, um gaúcho famoso o bastante para garantir qualquer manchete na imprensa local.
No dia seguinte, terça-feira, 12 de dezembro, os jornais da província reagiram com exagerada cautela à acusação contra o temido Seelig. Inexplicavelmente suprimiram do texto da matéria o nome do delegado gaúcho denunciado pelo jurista francês. Precavidos, os jornais de Porto Alegre se eximiram de responsabilidade, identificando a Agência Jornal do Brasil (AJB) como a fonte da notícia em que os nomes pareciam mais constrangedores do que os fatos.
Lembrar e contar
Na Caldas Júnior, nenhum de seus três jornais publicou a grave acusação de Weil. O principal jornal do trio, o Correio do Povo, publicou uma nota envergonhada no meio do noticiário de polícia, na página 5, com uma manchete que escondia mais do que revelava: "Advogado francês denunciou as autoridades responsáveis". Teve o cuidado de não dar no texto nenhum nome brasileiro. Disse que o sequestro tinha sido realizado por um comando do OCOA uruguaio, "comandado pelo general Amaury Prantl, com a participação de policiais brasileiros do DOPS de Porto Alegre". O mesmo embuste foi cometido pelos outros dois jornais da casa, a Folha da Manhã e a Folha da Tarde. Só 48 horas depois, na quarta-feira, 13, o vespertino atreveu-se a escrever o nome do delegado, em uma notícia sob outra manchete camuflada na página interna: "Sequestro. Advogado faz novas acusações contra os integrantes da polícia gaúcha".
No texto acovardado da Folha da Tarde, o nome de Seelig só aparece no sexto parágrafo. Ainda assim dedica quatro linhas à acusação e quinze à defesa do delegado, em que ele mesmo desdenha da denúncia. O jornal Zero Hora teve um tropeço ainda mais visível na edição de terça-feira, 12. Estampou sua falta de coragem na primeira página, com uma manchete igualmente medrosa: "Advogado francês acusa general uruguaio pelo sequestro". O surdo e cego editor do jornal não ouviu nem leu o nome de Seelig na denúncia.
O tal general "teria contado com o auxílio de policiais brasileiros", desinformava o vago subtítulo do jornal. Lá dentro, em matéria secundária da página central, Zero Hora continuava escondendo a informação essencial sobre o nome do primeiro agente brasileiro denunciado. A coragem que sobrou para identificar o general Prantl faltou vergonhosamente na hora de nomear Seelig. Era a segunda vez que Zero Hora tropeçava clamorosamente diante do sequestro.
Treze dias antes, na noite de quarta-feira, 29 de novembro, o jornal tinha nas mãos um material explosivo: o depoimento de Camilo, o garoto de oito anos, filho de Lílian Celiberti, apontando o prédio do DOPS gaúcho como seu local de cativeiro na capital. Era um material exclusivo enviado de Montevidéu pelos repórteres da Agência CooJornal, da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre. A reportagem havia sido comprada também por outros dois jornais, um paulista e outro brasiliense. O editor-chefe do jornal, Carlos Fehlberg, secretário de Imprensa do Palácio do Planalto no governo Médici (1969-1974) – o período mais truculento e repressivo da ditadura –, só baixou a reportagem para a oficina com uma insólita ressalva na abertura do texto:
Esta matéria, redigida pelo repórter Tomás Pereira, da CooJornal, está sendo publicada hoje simultaneamente nos jornais Folha de S.Paulo e Jornal de Brasília.
Não adiantou nada. Durante a madrugada a reportagem desapareceu misteriosamente na boca da rotativa. Foi substituída na manhã seguinte, quinta-feira, 30, por explicações pouco convincentes do editor-chefe aos irritados editores da redação. O leitor gaúcho, ao contrário dos outros brasileiros que leram jornal naquele dia, não ficou sabendo que sua própria polícia estava envolvida no sequestro binacional. A notícia só saiu na Zero Hora do dia seguinte, sexta-feira, 1° de dezembro, assim mesmo reverberando cautelosamente a reação no Legislativo gaúcho. "Debate na Assembléia sobre o envolvimento do DOPS no seqüestro", dizia a cuidadosa chamada na primeira página do jornal. Jogava a denúncia na boca do deputado Waldir Walter, do MDB, "baseando-se em matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo" – esclarecia o diário gaúcho, lavando as mãos com a própria incompetência jornalística.
Afinal, o jornal paulista tinha publicado sem ressalvas e sem medo a mesma reportagem da Agência CooJornal que a Zero Hora tinha comprado com exclusividade e esquecido na gaveta. Mais estranho ainda: Carlos Fehlberg era um jornalista experiente e um calejado editor político. Deixou a assessoria de imprensa do Planalto no final do governo Médici, em 1974, para assumir por 17 anos o comando do jornal que, sob sua chefia, tornou-se o mais importante do estado. Diante do sequestro, porém, ele parecia um iniciante.
Fehlberg voltou a tropicar feio em janeiro de 1979, quando a missão da OAB rastreava corajosamente o sequestro lá mesmo em Montevidéu. Dessa vez, a hesitação do editor-chefe foi denunciada por um subordinado direto, João Aveline, seu secretário de redação, que 20 anos depois revelou toda sua frustração num texto carregado de melancolia a partir do título: "A notícia não saiu. Velório na redação" [AVELINE, João. Macaco preso para interrogatório: retrato de uma época. Porto Alegre: AGE, 1999. p. 64-65].
Aveline lembrava que, após um doloroso período de censura, os jornais se atiravam em cima do caso do sequestro como se quisessem "recuperar o tempo perdido e ganhar a credibilidade dos leitores". Até o velho Correio do Povo disputava notícias, tanto que publicou um "furo de reportagem" com as andanças da comissão da OAB gaúcha na capital uruguaia. Outra vez, graças à ousadia do CooJornal, que tinha um repórter ao lado dos advogados para repassar suas reportagens aos jornais brasileiros. Fehlberg resolveu combater o concorrente da Caldas Júnior com suas próprias armas: mandou comprar, com exclusividade, o material do repórter Tomás Irineu Pereira. Era uma nova denúncia do CooJornal, a partir da identificação de outros policiais do DOPS pelos filhos de Lílian Celiberti. O texto e as três fotos foram comprados por Zero Hora, com exclusividade para o Rio Grande do Sul (o mesmo material seria publicado também no Rio e em São Paulo). Conta Aveline:
A edição estava quase fechando quando o estafeta da cooperativa chegou com a preciosíssima encomenda, que foi logo encaminhada à oficina pelas mãos do diretor do jornal, jornalista Lauro Schirmer. Como eram momentos de grande expectativa vividos nas redações dos jornais, todos sabiam que no outro dia Zero Hora tinha novidades exclusivas sobre o sequestro dos uruguaios.
Mas nesse mesmo "outro dia" a redação parecia um velório. Na face de cada um, a máscara da tristeza. Em cada gesto, um total desânimo. A tal matéria-bomba não saíra. Folha de S.Paulo e O Globo publicaram. E com chamada de capa. Parece até que nós havíamos comprado a matéria para garantir sua ausência nos jornais do Rio Grande do Sul.
Zero Hora deu no dia seguinte ao dia seguinte. Provavelmente porque a responsabilidade, na ótica de quem vetou, seria de quem divulgou primeiro.
Não parece, mas a história narrada pela imprensa é uma lenta, articulada sucessão de dias que se sucedem, um dia seguinte ao outro. O fio caprichoso que une fatos, cenas, pessoas e motivações variadas acaba tecendo o relato que define tempos, homens e biografias. Mais cedo ou mais tarde, apesar dos atos de força, dos surtos de violência, das vacilações de caráter e das razões subjacentes e subalternas de uns e outros, a verdade acaba aflorando e prevalecendo.
A mesma imprensa que hesita, vacila e tropeça pode, no dia seguinte, reparar erros, remediar falhas, recontar momentos e resgatar a ética de sua função essencial – contar o que é, por que é, como é.
A crônica de máximas e mínimas da imprensa brasileira – antes, durante e depois do golpe de 1964 – mostra que sempre há o dia seguinte.
Contra todas as previsões, nossa obrigação é lembrar e contar.
Não importa o tamanho da treva, o sufoco do tempo, o chumbo do ar, a força da ventania.
Sempre haverá o dia seguinte.
O dia para lembrar. E contar.
Sem comentários:
Enviar um comentário