Mentes cegas
Desde a infância somos capazes de perceber o que os outros sentem e pensam; autistas, porém, não dispõem desse recurso que permite a comunicação em nível mais sutil
por Bruce M. Hood
Na cena final do filme Casablanca, quando Humphrey Bogart finalmente pede a Ingrid Bergman que entre no avião que a levará de volta ao seu marido, a jovem mãe que assiste à sessão da tarde pela TV deixa cair uma lágrima. Instintivamente, o filho de 2 anos tenta confortá-la, oferecendo-lhe seu ursinho de pelúcia. Neste momento, os dois (cada um a seu modo) mostram a consciência intuitiva do estado mental e emocional de outra pessoa.
Esse tipo de intuição surge naturalmente para a maioria de nós – mas não para todos. Pessoas com autismo não dispõem desse recurso. O transtorno do desenvolvimento afeta uma pessoa em cada 500 (essa cifra varia, dependendo de como definimos o distúrbio). Atualmente, tem sido adotado o termo “transtornos do espectro do autismo” para ressaltar que a patologia varia amplamente em grau de seriedade, mas mantém em
comum três sintomas: profunda ausência de habilidades sociais, baixa capacidade de comunicação e comportamentos repetitivos. Independentemente da gravidade da manifestação, na base dessas características estão os problemas de intuição social.
Autistas têm dificuldade em se aproximar de outras pessoas porque não construíram um repertório de habilidades de desenvolvimento que permite que os humanos se tornem “especialistas em ler a mente alheia”. Não falamos aqui da habilidade especial de descobrir pensamentos como fazia o sr. Spock, personagem da série Jornada nas estrelas, mas da capacidade de inferir o que os outros estão pensando e sentindo em diferentes circunstâncias. No início da infância, as crianças saudáveis desenvolvem, gradativamente, uma compreensão cada vez mais sofisticada de que os outros apresentam estados mentais que motivam seu comportamento. Por exemplo,
você será capaz de notar que seu interlocutor está nervoso e agitado, mesmo que ele não
lhe diga isso em momento algum da conversa. Ou, se você esquece sua bolsa no escritório, posso perceber que você acredita que ela estará lá mesmo que a faxineira a tenha colocado no depósito de achados e perdidos. Eu posso entender que você mantém uma falsa crença, talvez para se defender de uma frustração. Essa possibilidade natural, da qual desfrutamos desde criança, é uma “teoria da mente”. Formulamos várias delas, muitas vezes por dia, sem sequer nos darmos conta de quantas. É por volta dos 3 anos que começamos a perceber que as outras pessoas têm objetivos, preferências, desejos, crenças e até fazem juízos falsos. Sem essa gama de habilidades sociais a mente torna-se “cega” – incapaz de entender o que os outros estão pensando e por que fazem certas coisas. Isso não quer dizer que não nos surpreendamos, mas de forma geral temos – alguns mais, outros menos, é verdade – condições de compreender o outro e suas razões.
Bruce M. Hood psicólogo, diretor do Centro de Desenvolvimento Cognitivo de Bristol, da Universidade de Bristol, Inglaterra, autor de Supersense: why we believe in the unbelievable (HarperOne, 2009) e de The self illusion, a ser publicado nos Estados Unidos.
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